Negra em constante movimento, a rapper Negga Gizza fala sobre questões que apontam para Consciência no Hip Hop.
Gizza fala sobre trabalhos realizados com jovens através dás expessões do Hip Hop e de aúdio visual. Ao falar sobre preconceitos, ela fala também de estratégias de enfrentamento, e não aponta a educação como único fator de transformação.
Mulher, negra,rapper, ativista e empreendedora social. Podemos assim "classificar" uma das fundadoras da CUFA.
Confira toda a movimentação de Negga Gizza pela entrevista.
Cufa: um pólo de produção cultural, que pode transformar a vida do jovem.
A Central Única das Favelas (Cufa) surgiu em 1998 com reuniões de jovens de várias favelas do Rio de Janeiro, que pertenciam ao movimento hip hop e buscavam espaço na cidade para expressar suas atitudes, questionamentos ou simplesmente sua vontade de viver.
Tornou-se uma organização nacional que trabalha por um ideal: transformar as favelas, seus talentos e potenciais diante de uma sociedade onde os preconceitos de cor, de classe social e de origem ainda não foram superados.
Hoje, a Cufa funciona como um pólo de produção cultural, que forma, e informa, jovens de comunidades, oferecendo perspectivas de inclusão social. Uma das fundadoras da Cufa – junto com MV Bill e Celso Athayde – Negga Gizza, como é conhecida Giselle Gomes na comunidade, conta um pouco do que é a Cufa e fala da importância da cultura, da música, na vida do jovem.
– A Cufa surgiu como uma manifestação cultural do hip hop, mas acabou ampliando as formas de expressão, conscientizando e elevando a auto-estima das camadas não privilegiadas, por meio de uma linguagem própria. Você pode falar um pouco desse trabalho com os jovens, dando enfoque para a importância da música e da cultura na formação do jovem?
Gizza – A gente tem um espaço funcionando dentro da comunidade e esse trabalho da Cufa é uma opção para o jovem. É uma forma de dar uma oportunidade para o jovem ter uma opção. Eu acho que é isso que falta hoje não só dentro das favelas mas na sociedade em geral. O jovem precisa de oportunidade, seja ele um jovem que conseguiu fazer o estudo básico, o segundo grau completo, seja ele uma pessoa que não conseguiu estudar. Esses dois jovens precisam ter uma oportunidade, de acesso a cultura, a informação, de freqüentar estágios.
– Vocês promovem essa oportunidade aos jovens por meio de que atividades?
Gizza – Temos atividades nas áreas da educação, lazer, esportes, cultura e cidadania, por meio das quais procuramos contribuir para o desenvolvimento humano e trabalhamos com vários elementos do hip hop: graffiti (movimento organizado nas artes plásticas em que o artista aproveita espaços públicos, criando uma nova identidade visual em territórios urbanos); DJ (artista que alia a técnica à performance, utilizando pick-ups e discos de vinil); break (estilo de dança de rua originário do movimento hip hop); rap (‘ritmo e poesia’, estilo musical culturalmente herdado das populações latinas e negras e cujas letras retratam o cotidiano das periferias); audiovisual (valorização da imagem como instrumento de mobilização social); basquete de rua (esporte oficialmente embalado pelo rap); literatura (onde os jovens expressam sua arte e suas vivências através da escrita e obtêm conhecimentos relativos às obras ou aos escritores literários) e projetos sociais (conjunto de ações que busca por uma). (transformação social a partir das comunidades).
– Na área do audiovisual vocês têm um trabalho reconhecido ...Gizza – O audiovisual surgiu com a idéia de ter o registro de nossa história, das coisas que acontecem, da necessidade de registrar a informação para nós mesmos e informações futuras, para pessoas que ainda vão nascer, para registrar uma história. Ainda estamos aprendendo, fizemos o documentário Falcão (Falcão – Meninos do Tráfico é um documentário produzido pelo rapper MV Bill, pelo seu empresário Celso Athayde e pelo centro de audiovisual da Central Única das Favelas que retrata a vida jovens de favelas brasileiras que trabalham no tráfico de drogas). Além de ser uma produção independente, que se tornou popular, foi uma oportunidade para os jovens estarem mexendo com a câmera, fazendo coisas, aprendendo. Além disso, produzimos e veiculamos a cultura hip hop através de publicações, discos, vídeos, programas de rádio, shows, concursos, festivais de música, cinema, oficinas de arte, exposições, debates, seminários e outros meios.
– Vocês começaram esse trabalho aqui, na Cidade de Deus, e depois foram ampliando para outras favelas do Rio e de outros Estados. Quantas unidades da Cufa existem hoje?
Gizza – Cidade de Deus foi à primeira unidade, depois trabalhamos um tempo em Jacarezinho, mas lá a base fechou. Hoje, no Rio, tem unidades da Cufa em Cidade de Deus, no Complexo do Alemão, em Acari, e em Madureira, onde funciona o Centro Esportivo e Cultural da Cufa. Fora do Rio, temos unidades em São Paulo, no Ceará, em Belo Horizonte, no Recife, em Mato Grosso e em Brasília.
– Como foi esse trabalho de expansão?
Gizza – No começo era um movimento muito unificado (do hip hop), depois as pessoas foram criando seus núcleos, suas redes e cada um descobrindo a melhor forma de trabalhar. Eu trabalho com hip hop mas não dá para ter o mesmo pensamento do cara que mora em São Paulo, que mora no Maranhão. A gente tem que viver o hip hop na nossa realidade, no Rio de Janeiro, o funk e tal... Daí percebemos a importância de conseguir trabalhar, de criar um movimento, que fosse ligado ao hip hop e que fosse além da cultura do hip hop. Depois, na prática, descobrimos que era uma questão de se organizar, não era só ter um movimento, um núcleo.
– Como vocês trabalham com o preconceito, já que o próprio movimento do hip hop ainda sofre com o preconceito?
Gizza – O preconceito existe, pela diferenças sociais, que faz com que as pessoas se afastem, não se conheçam, cada um tem a sua prioridade, o seu privilégio. O preconceito separa as pessoas e não tem como acabar com isso, porque é um problema histórico. Mas acho que tem como fazer com que as pessoas possam ser vistas de forma diferente, que é o que todo mundo quer: ser visto de forma mais respeitosa, ser recebida nos espaços com respeito e acho que o preconceito está um pouco longe disso. A gente não está aqui para chorar, para reclamar, mas para tentar fazer mudança, de forma pacífica, que é bom para os dois lados, mas se não for possível, de forma mais agressiva porque, às vezes, não existe outra forma de fazer mudança sem ser, em alguns momentos, agressivo. Hoje a gente está muito mais aberto a conversar com todo mundo, a discutir solução, pensar em soluções. A gente não quer ficar para trás, queremos evoluir. Eu acho que os novos pensamentos estão vindo, a gente pratica isso, aprende a ser diferente, mesmo que a nossa realidade faça com que às vezes a gente seja muito agressivo, a tendência é a gente segurar essa agressividade e pensar de forma diferente.
– Você falou da importância da busca de soluções. Com a experiência do trabalho com a comunidade, quais seriam as melhores soluções, enquanto política pública, para a juventude?Gizza – No espaço que temos hoje oferecemos cultura, cursos profissionalizantes e temos como meta chegar na área da saúde, conseguir trabalhar um pouco em palestras, em projetos para dar as pessoas noção de como cuidar da sua saúde na realidade em que elas vivem, na comunidade com esgotos abertos, ensinar como se preserva a saúde da criança, do jovem, do idoso. Além das oficinas voltadas à cultura, da qual já falamos, temos um telecentro, as pessoas podem viajar no site, ter informações não só de entretenimento, mas para seus estudos e para sua área profissional. Temos também cursos profissionalizantes, como de gastronomia, produção de eventos, viabilizados em parceria com o governo federal.
– Como é a aproximação com jovens? Vocês procuram, a comunidade indica, é iniciativa do próprio jovem vir para Cufa?
Gizza – A intenção é fazer com que o jovem reconheça o espaço como um espaço dele, que ele se sinta em casa, a ponto da gente ter que botar ordem, como se aquilo fizesse parte da vida dele dentro da comunidade. O jovem se inscreve para um curso e a partir dali a nosso trabalho é fazer com que ele freqüente o espaço, as oficinas e que a gente acompanhe ele fora do espaço. Se acabar uma oficina, a nossa vontade é que ele continue freqüentando o espaço, não como um aluno, mas como uma pessoa que vai contribuir com o que aprendeu e passar para outras pessoas. Os jovens que trabalham aqui hoje, como voluntário, e os que prestam serviços, são pessoas que saíram daqui. É um diferencial, embora o jovem que tenha aprendido lá fora ele também contribui, mas o que aprendeu aqui ele serve como referência para o próprio jovem da comunidade. Nossa intenção é que o jovem acabe a oficina mas continue freqüentando o espaço como parte da vida dele, nem que venha aqui para fazer uma hora de voluntariado, duas vezes por semana. Com as crianças e adolescentes a gente tem um acompanhamento, que envolve psicólogos, psicopedagogos, assistente social, que acompanham esse jovem na escola e em casa, onde conversam com os pais para eles entenderem como é a oficina que o jovem participa. O menino que faz oficina de basquete de rua chega em casa querendo jogar bola e, às vezes, os pais reprimem e não sabem a importância que é para ele aquela atividade. Então a gente informa qual o método que usamos para esse jovem jogar basquete de rua. Ao compreender, os pais aceitam toda a demonstração, o reflexo que acontece com ele dentro de casa, que ele trouxe da oficina que ele freqüentou. É trabalhoso mas tem tido efeito.
– Freqüentar a escola é uma exigência para participar das atividades da Cufa?
Gizza – É recomendável, mas se não está a gente procura abrir espaço para essa criança. Já trouxemos jovens que não estavam estudando e, ao participar de uma oficina, voltou a estudar. Esse núcleo de pedagogas, psicólogas e assistentes sociais acaba indo às escolas e pedindo espaço para esses alunos, seja adolescente, seja criança. A gente leva de volta para a escola, é um trabalho feito em parceria com as escolas, com a família, é uma junção.
– A Cufa promove, este ano, a oitava edição do festival Hutúz. Como é participação dos jovens na produção desse festival, criado para divulgar o movimento hip hop?
Gizza – A produção e a direção são feitas pelos jovens e pela comunidade. É um festival voltado para o hip hop. Nasceu como um prêmio voltado para os artistas do hip hop, para quem fazia dança, e foi crescendo (começou em 2001). Tem um prêmio para os destaques - quem se destacou em 2007 vai aparecendo na lista, indicado por jurados. São 15 categorias que abrangem ciência, conhecimento, documentários sobre hip hop, a melhor música, etc. Tem também um festival de shows que é o Hútuz Hap Festival, que acontece no Circo Voador. São três noites que reúnem mais de 500 artistas. Tem também o seminário Hútuz, que reúne pessoas do movimento e de fora para analisar e discutir o que está acontecendo no hip hop, e temos o Hútuz Latino, que procura fazer a junção da música Rap no Brasil e na América Latina, divulgar o que está rolando, saber qual é a língua que cada um está falando, se é parecida ou é diferente. A gente acaba fazendo também da música uma discussão, é bem bacana.O envolvimento dasmulheres no tráfico.
– E qual a linguagem hoje do jovem latinoamericano?
Gizza – É muito parecido com o que a gente tem falado no Brasil, tanto nas discussões políticas, quanto nas reivindicações. Existem outras cufas... é um movimento de um monte de gente consciente, que quer fazer mudança de verdade e quer trazer novos adeptos para essa mudança. A gente está falando a mesma língua nesse sentido, estamos fazendo algo, ninguém está parado, mas procurando alguma coisa para abrir caminhos. É bom saber que o efeito de viver o inconformismo que a gente vive aqui também existe nos países vizinhos. Vamos pensar, mobilizar as pessoas para pensar, escolher os políticos certos, pensar o futuro do país, mas pensar de forma pratica, que seja bom para todos os lados. Acho que é isso. A intenção não é fazer com que melhore aqui para nós, mas fazer com que melhore para todo mundo e, se vai melhorar para todo mundo, que nós estejamos incluídos nisso também, a mobilização é em volta disso.
– Será lançado oficialmente este mês o livro “Falcão – Mulheres e o Tráfico”, de Celso Athayde e MV Bill...
Gizza – Mulheres e o Tráfico é a continuação do projeto que resultou no documentário e no livro Falcão — Meninos do Tráfico, lançado em 2006. É resultado de um trabalho do MV Bill e do Celso Athayde, que descobriram que a vida desses meninos estava ligada à trajetória de suas mães, filhas, irmãs, amigas, esposas e namoradas. Eles contam histórias de mulheres que, de alguma maneira, passaram a interagir e, em alguns casos, a integrar a indústria do tráfico de drogas e resolveram fazer esse livro mostrando a experiência e contando o que está acontecendo no Brasil. O livro será lançado no dia 26, no Cine Odeon, no Rio, com uma mesa-redonda para discutir o envolvimento das mulheres no tráfico.
– Como você se envolveu com a Cufa, se tornou uma líder na comunidade?
Gizza – Eu sou uma mulher que era uma menina inconformada, com muitas perguntas, buscando respostas. Me envolvi em rádio comunitária com 13 anos, conheci o hip hop, que se tornou o caminho para eu fazer as coisas que eu tanto queria fazer. Eu nem sabia direito o que queria, mas tinha muitas perguntas, queria entender como era o sistema, como aconteciam as coisas, como elas se refletiam dentro da minha vida, porque a política em si refletia na minha casa, no meu bolso, na minha família. Tinha vontade de fazer parte de uma revolução... Eu vim de uma família que não era tão estrutura, perdi um irmão no tráfico de drogas, e queria aprender qual era o caminho para se ter uma família estruturada no Brasil, para melhorar a vida. Descobri que minha história não era a única, que as pessoas tinham histórias parecidas, que estava crescendo o número de jovens morrendo, de jovens se envolvendo com droga. Eu acabei encontrando um pouco de Deus, um pouco de solução, encontrei um caminho, participei da fundação da Cufa junto com o Bill e com o Celso, me envolvi com a música, gravei um disco, acabei entrando nessa luta e estou aqui com muita satisfação. O que me mantém viva é isso: a gente está em movimento, temos quatro bases funcionando, a regra é imposta por nós, temos contribuição de fora, respeitamos essas pessoas, mas a gente controla tudo, faz tudo e isso faz a diferença, a gente faz junto com a comunidade, junto com a favela.
– Do lado pessoal você conseguiu uma família mais estruturada?
Gizza – Estou casada, com dois filhos, acho que vou conseguir deixar bastante coisa para os meus filhos, uma influência, minha filha de cinco anos me acompanha e tento passar para ela essa noção... Se amanhã eu não estiver aqui, ela já sentiu o gosto de que minha mãe fazia isso, qual o propósito, vai entender um pouco. Meu filho a mesma coisa. Não é fácil dar atenção a sua família e se dedicar a Cufa, mas acho que consegui ter uma base, noção de muitas coisas que eu não tinha, achar um caminho.